Por Elton Alisson
A cozinha franqueou a entrada das mulheres no laboratório científico –
o marco da ciência moderna que se transformou em um espaço
eminentemente masculino, onde algumas delas se destacaram a duras penas
em áreas que até então não atraiam a atenção dos homens.
A avaliação foi feita por Ana Maria Alfonso-Goldfarb, professora da
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, na penúltima edição
do Ciclo de Conferências Ano Internacional da Química – 2011, realizada
em 9 de novembro no auditório da FAPESP com o tema “A contribuição de
Marie Curie para a ciência e um olhar sobre o papel das mulheres
cientistas”.
De acordo com Goldfarb, foi por meio da habilidade de atear e
controlar o fogo para preparar os alimentos – considerada uma atividade
difícil e propriamente feminina – que as mulheres ajudaram a desenvolver
até meados da Idade Média uma série de produtos. Entre eles estão os
primeiros destiladores, extratos, além de perfumes, medicamentos,
pomadas e licores.
“A cozinha era um espaço restrito para a maioria das mulheres. E foi
entre a preparação de caldos e guisados que elas começaram a praticar o
trabalho de laboratório desenvolvendo uma série de produtos que,
posteriormente, passaram a ser utilizados por médicos e botânicos, na
maioria das vezes se apropriando das descobertas femininas e não lhes
atribuindo o devido crédito”, disse.
Segundo a pesquisadora, foi entre os séculos 16 e 17, quando o prelo
se tornou importante e aumentou a circulação dos livros, que a “medicina
da cozinha” ou “química das damas”, como foi denominado esse trabalho
realizado pelas mulheres nos laboratórios-cozinha da época, ganhou maior
importância.
Algumas delas, que tinham mais posses ou importância social,
começaram a publicar livros com seus nomes. Uma delas foi a rainha
Henrietta Maria (1609-1669), da Inglaterra, que financiou a edição do
livro
The Queen’s Closet Opened.
Entretanto, essa fase, que durou entre 50 e 60 anos, acabou
justamente no momento em que surgiram os laboratórios, que marcaram a
ciência moderna. “Como decorrência desse fato, as mulheres começam a
voltar discretamente para a cozinha”, disse Goldfarb.
Já no século 18 surgiram os grandes salões literários, onde as
mulheres ditaram o tom. Porém, de acordo com a pesquisadora, elas não
tinham acesso às sociedades científicas ou aos grupos restritos de
cientistas da época, onde a ciência, de fato, era feita.
Em função disso, são raros os exemplos de mulheres que conseguiram
ter algum destaque, ainda que superficial, na ciência realizada nessa
época. Alguns dos poucos exemplos são os da madame Émilie du Châtelet
(1706-1749) e de Marie Anne Pierrete Paulze (1758-1836), a madame de
Lavoisier.
Já entre os séculos 19 e 20 se iniciou o processo de educação
científica feminina nos países saxônicos e anglo-saxônicos a
conta-gotas, quando as primeiras mulheres conseguiram ter acesso aos
colleges. Porém, a maioria que conseguia se formar acabava voltando para
casa frustrada, por não conseguir trabalhar.
Como saída, algumas delas direcionaram suas carreiras para áreas que
estavam passando por uma reformulação de bases ou emergindo, e que
demandavam um trabalho fastidioso de cálculos e observações que não raro
duravam meses. Entre essas áreas estavam a cristalografia, a astronomia
e a radioatividade.
“Foram nessas áreas que sobrou espaço para as mulheres e nas quais
elas foram recebidas, porque tinham que ser abnegadas e dedicadas para
realizar um trabalho duro, pesado e que repelia o sexo masculino”,
explicou Goldfarb.
Não por acaso, Marie Curie (1867-1934) se tornou a primeira mulher a
ser laureada com o Prêmio Nobel de Química, em 1911, e o de Física, em
1903, que dividiu com seu marido, Pierre Curie (1859-1906) e com Antoine
Henri Becquerel (1852-1908), justamente por suas pesquisas sobre
radioatividade.
A filha da cientista polonesa radicada francesa, Irène Joliot-Curie
(1897-1956), tornou-se a segunda mulher a ganhar o Nobel de Química, em
1934, com o marido Frédéric Joliot-Curie (1900-1958), pela descoberta da
radioatividade artificial.
E as outras duas únicas mulheres que receberam o prêmio Nobel de
Química, entre os 159 laureados com a honraria – a egípcia, radicada
inglesa, Doroty Crowfoot Hodgkin (1910-1994) e a israelense Ada Yonath
–, foram premiadas por pesquisas em cristalografia.
Marie Curie
De acordo com Goldfarb, além de Marie Curie, outras mulheres de sua
época foram indicadas ao prêmio Nobel. Porém, a cientista francesa
conseguiu se distinguir das demais e não se tornar mais uma “ilustre
desconhecida” na história da ciência, além de sua genialidade, pela
maneira como conseguiu projetar sua imagem.
“Ela era, de fato, talentosa, abnegada, uma fábrica de ideias, e
soube potencializar isso como poucas mulheres. Ela registrava tudo e
sempre aparece nas fotografias da época atarefada e compenetrada,
observando ou realizando experimentos”, disse Goldfarb.
Além disso, Curie soube escolher os homens certos. O marido, Pierre
Curie, que a conheceu na Universidade de Sorbonne, onde era professor de
física, tinha uma enorme admiração por ela. E seu orientador,
Becquerel, com quem o casal dividiu o Nobel de Física, era uma figura
complacente, que facilitou muito o seu trabalho de pesquisa.
“Ela conseguiu penetrar o núcleo duro da ciência da época, sem
dúvida, pelo trabalho, excelência e dedicação à pesquisa. Mas, também,
com muita estratégia”, avaliou.
A cientista só conseguiu atrair a atenção de Pierre para suas
pesquisas sobre radioatividade quando Gabriel Lippman (1845-1921), que
era supervisor dela em Sorbonne, leu seu primeiro trabalho na Academia
de Ciências de Paris, na qual ela não foi aceita como membro.
O trabalho só foi reconhecido e passou a ser discutido pela
comunidade científica da época quando Pierre assinou juntamente com ela
os resultados.
“Esse reconhecimento científico só ocorreu quando se formou a figura
do casal. E esse fato tem uma relação direta com uma noção de gênero que
havia na época, chamada de complementaridade sexual, que está
relacionada com a longa história do isolamento da mulher das práticas
laboratoriais”, disse Gabriel Pugliese, professor da Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), durante o evento.
Segundo Pugliese, por essa noção de gênero da época, o homem era
vinculado à política, ao espaço público, enquanto a mulher estava
restrita à esfera privada, aos trabalhos domésticos. Uma
complementaridade de funções que está ilustrada na própria forma como
Marie e Pierre Currie dividiram o trabalho de pesquisa sobre a
radioatividade.
Enquanto Marie ficou encarregada de realizar os experimentos para
purificar os elementos radioativos (o trabalho “doméstico”), Pierre foi
incumbido de estudar as radiações emitidas pelas substâncias químicas (o
trabalho de laboratório).
“Isso também tem relação com a noção de laboratório como cozinha, em
que Marie Curie aparece como aquela que faz os experimentos, uma
auxiliar do Pierre, enquanto ele faz o trabalho mais prestigioso de
pensar e cumprir o ofício de chefe do laboratório, procurando recursos e
estabelecendo relações com outros cientistas”, disse Pugliese.
“A intenção dos organizadores do Nobel, na época, era premiar apenas
Becquerel e Pierre, mas esse último, ao saber disso, recusou-se a
receber o prêmio sem dividi-lo com Marie”, disse.
Homenagem à FAPESP
Durante a abertura da penúltima edição do Ciclo de Conferências Ano
Internacional da Química – 2011, a FAPESP recebeu uma homenagem pelos
seus 50 anos, que completará em maio de 2012, da Sociedade Brasileira de
Química (SBQ).
A homenagem, feita na forma de uma escultura, criada pela artista
plástica Sara Rosemberg, batizada de “Rosa dos ventos”, foi entregue por
Vanderlan da Silva Bolzani, professora do Instituto de Química de
Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro do comitê
nacional de atividades do Ano Internacional da Química 2011, da SBQ, a
Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.
Cruz agradeceu a homenagem em nome da FAPESP e cumprimentou Bolzani
pela organização do Ciclo de Conferências Ano Internacional de Química –
2011, além da comunidade de química do Estado de São Paulo e todos os
pesquisadores da área pelo trabalho que têm realizado em prol da ciência
brasileira.
“Muitas vezes lutando e vencendo de forma imaginativa diversos tipos
de obstáculos, os químicos brasileiros vêm produzindo ciência que é
competitiva mundialmente em vários dos centros de pesquisa que nós temos
no Estado de São Paulo e no Brasil”, disse.
Promovido pela Sociedade Brasileira de Química (SBQ) em parceria com a revista
Pesquisa FAPESP,
o Ciclo de Conferências Ano Internacional da Química – 2011 integrou as
comemorações oficiais do Ano Internacional da Química, instituído pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) e a União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac, na
sigla em inglês).
O ciclo foi coordenado por Bolzani e por Mariluce Moura, diretora de redação de
Pesquisa FAPESP.