Rita de Cássia Lopes
Bruxas, feiticeiras e
curandeiras sempre estiveram presentes na história da humanidade, mas só podem
ser entendidas dentro do contexto em que atuavam. O período que nos interessa
nesse artigo é o da Inquisição Portuguesa (1536-1820), que atingiu com seus
tentáculos todo o império português d'além mar.
Para a legislação
inquisitorial, não havia distinção entre bruxas, feiticeiras e curandeiras.
Portanto, é difícil distinguir suas especificidades, pois todas estavam ligadas
a práticas mágicas. Como exemplo disso temos as curandeiras que, além de
fazerem uso de ervas medicinais, tiravam o quebranto ou curavam a erisipela com
uma oração. Alguns estudiosos da Inquisição acreditam que feitiçaria é uma
prática individual que faz encantos e sortilégios, enquanto que a bruxaria é de
caráter coletivo e está associada a um culto. Na Galícia, em fins do século
XVI, esta divisão estava clara, pois acreditavam que as bruxas enviavam o mal,
enquanto as feiticeiras o sanavam.
Talvez tenham existido
diferenças entre bruxas, feiticeiras e curandeiras, mas a homogenização destas
atividades impetrada pela Inquisição fez com que desta forma chegassem até nós.
Durante todo o período de funcionamento do Tribunal do Santo Ofício, os
processos de bruxaria tiveram como documento norteador o Malleus Maleficarum
(O Martelo das Feiticeiras), escrito em 1486 pelos frades dominicanos James Sprenger
e Heinrich Kramer, a partir do Manual dos Inquisidores elaborado cem
anos antes por Nicolás Eymirick. Didático, o Malleus está dividido em
três partes: a primeira prova a existência de bruxas e demônios; a segunda
descreve os malefícios causados pela feitiçaria e a terceira orienta os
inquisidores quanto à forma de se obter confissões e quais os procedimentos que
devem ser adotados durante todo o processo inquisitorial.
A caça às bruxas em Portugal
intensifica-se a partir de 1547, após o perdão geral às pessoas de origem
hebraica. O auto-de-fé de 1559, em Lisboa, tornou-se famoso por ter tido a
presença de grande número de bruxas. Algumas foram condenadas ao degredo e a
açoites públicos, enquanto outras queimaram nas fogueiras do Rossio. Essa caça
foi fruto de uma intervenção da rainha Catarina que ordenou uma verdadeira
devassa em Lisboa e arredores. Muitas das confissões de bruxaria e feitiçaria
presentes nesse artigo, aos olhos de hoje, podem parecer surreais. No entanto,
devem ser analisadas na complexidade da mentalidade da época: a Idade Moderna
com sua herança medieval e o universo colonial.
Além do mais, muitas foram
obtidas através da tortura. Esta, até o século XVII, só era utilizada nos casos
em que havia insuficiência de provas. Porém, a partir do Regimento do Santo
Ofício de 1640, tornou-se algo corrente dentro do processo inquisitorial. A
intensidade das torturas sofridas variava de acordo com o arbítrio do
inquisidor, assessorado pelo médico e pelo cirurgião-barbeiro do Tribunal.
Durante os tormentos, só podiam estar presentes os carrascos, o médico, o
cirurgião, os inquisidores, um representante do bispo e o notário. Antes de se
iniciar o tormento, o réu era avisado de que, se morresse ou quebrasse algo, a
culpa seria exclusivamente dele.
MAS DO QUE ERAM ACUSADAS ESSAS
MULHERES?
De acordo com Laura de Mello e
Souza, "os portugueses chegaram ao Brasil num momento em que a presença
de Satã entre os homens era especialmente marcante. Monstros, animais, seres
diabólicos, os colonos foram também feiticeiros, as formulações se sucedendo e
se desdobrando no imaginário europeu". Recorrer a práticas mágicas foi
uma das formas de ajuste do colono a um meio novo e hostil. A herança cultural
acerca do conhecimento de ervas e de procedimentos rituais de índios, negros e
europeus combinaram-se num processo sincrético, criando novas práticas mágicas.
Assim, o uso das adivinhações, rezas e mezinhas avançou junto com a
colonização.
No Brasil, ainda hoje se
conservam fórmulas mágicas para combater quebranto, mau-olhado, erisipela e
cobreiro, principalmente nos locais onde é difícil o acesso a médicos e
hospitais. Grande parte dos curandeiros do Brasil colonial era formada por
índios, africanos e mestiços. Ao contrário da feitiçaria e da bruxaria, onde as
mulheres predominavam, o curandeirismo foi principalmente exercido por homens,
pois as curas mágicas tinham grande importância nas culturas primitivas. É
famoso o conhecimento dos feiticeiros tupinambás acerca da cura através da
magia. Porém, não eram só os índios e os africanos que praticavam a cura
mágica.
Os europeus, sem conhecimento
para explicar as doenças, viam-nas como de origem sobrenatural. Assim, era
natural que se recorresse à magia para curá-las. O papel das mulheres era
fundamental nesse momento, pois tinham um verdadeiro arsenal de remédios da
medicina popular que utilizavam aliados às orações específicas para cada caso.
A busca da cura através de procedimentos sobrenaturais aproximava a medicina
popular da feitiçaria. Daí a associação dos inquisidores entre bruxaria e
curandeirismo.
Não estava só na cura de
doenças a importância dessas "feiticeiras" na vida cotidiana
colonial. Dependentes da Metrópole, a aventura ultramarina estava presente no
dia-a-dia da sociedade: era necessário obter notícias de um parente que viajara
para o Reino, saber quando um navio carregado de mercadorias chegaria, prever
as condições de viagem e os perigos que enfrentariam no mar, entre outras
informações fundamentais. As feiticeiras eram procuradas para dar essas
respostas.
A vendeira Brígida Lopes foi
denunciada à Inquisição em 1593 por ter feito "umas feitiçarias e
sortes com água e chumbo" onde via André Magro d'Oliveira embarcar
para Portugal, lutar no mar com um navio inglês, chegar a Lisboa e voltar ao
Brasil. Como tudo ocorreu tal como previra, foi denunciada pelo próprio André.
Muitas vezes, as feiticeiras eram acusadas quando uma nau se perdia ou afundava
no mar tenebroso. Conflitos entre vizinhos e conhecidos também acabavam sendo
alvo de denúncias de bruxaria.
É o caso de Luzia da Silva
Soares, escrava acusada de feitiçaria pela família de seu senhor (teria causado
a morte de dois de seus filhos) e por um pretendente rejeitado. Questões
cotidianas tornavam-se denúncias. Construir coletivamente o estereótipo da
bruxa era uma forma de identificar o responsável pelas desgraças e excluí-lo da
comunidade. Numa sociedade escravista como a do Brasil colônia, a feitiçaria
fez parte da resistência africana. Muitas vezes, recorrer a procedimentos
mágicos era a única forma possível de defender-se.
Porém, esta também legitimava a
repressão e a violência sobre o cativo. Ao associar os escravos a feiticeiros,
estes eram responsabilizados por todas as desgraças ocorridas no trabalho, na
lavoura e na casa grande. Os conflitos manifestavam-se também em infanticídios,
reais ou imaginários, tanto na Metrópole quanto na Colônia. Na ânsia de
encontrar explicações para a enorme mortalidade infantil, acreditava-se no
poder das bruxas em secar o leite materno ou, ao assoprar o rosto do bebê,
torná-lo incapaz de mamar, levando-o à morte.
No imaginário coletivo, estas
crianças corporificavam os temores em relação às bruxas. Outras feitiçarias
tinham fins amorosos. Faziam-se filtros de amor, poções, ungüentos, cartas de
tocar e sortilégios diversos para facilitar as relações amorosas. Temos o caso
de Joana de Vilhena, moradora de Santiago de Cacém, em Portugal, que denunciou
sua tia, em 1572, por fazer magias juntamente com uma cigana, queimando ervas e
recitando orações para que "seu homem fosse ter com ela sem ninguém
saber".
Na Bahia, Antonia Fernandes, a
Nóbrega, foi acusada de, entre outras feitiçarias, rezar junto ao amado: "João
eu te encanto e reencanto com o lenho da vera cruz, e com os anjos filósofos
que são trinta e seis e com o mouro encantador que tu te não apartes de mim, e
me digas quanto souberes e me dês quanto tiveres, e me ames mais que todas as
mulheres". Para arrumar casamento, todas as orações eram válidas.
Rezava-se para as almas, Nossa Senhora da Graça, São Cipriano e São Marcos.
Além da invocação dos santos, também havia orações que se voltavam para
estrelas, plantas e animais e recorriam-se, também, a orações e sortilégios
indígenas, com a utilização de pós, raízes e beberagens.
As cartas de tocar eram comuns
em Portugal e no Brasil colonial. Acreditava-se que ao tocar o amado com a
carta, este seria conquistado. Isabel Roiz, conhecida como a Boca Torta, vendia
essas cartas na Bahia e afirmava que quem a tocasse "se iriam após
ela". Assim, os inquisidores sexualizavam os crimes de feitiçaria,
enxergando as bruxas como prostitutas. Um exemplo disso é o da bruxa portuguesa
que confessou que "nenhuma mulher pode ser bruxa sem subir pelos
degraus de feiticeira e de alcoviteira".
Essa associação entre
feitiçaria e prostituição também era fruto da própria transformação da mulher
em bruxa. Acreditava-se que esta, durante o ritual de pacto com o demônio,
deveria jurar sobre o livro negro que renegava a Deus, selar o pacto com um
beijo no rabo do demônio figurado em bode e manter relações sexuais com ele.
São numerosos os relatos em que as bruxas confessam esses procedimentos.
Devemos nos lembrar que muitas confissões eram resultado dos tormentos sofridos
no Tribunal.
De acordo com o Malleus
Maleficarum, se, durante a tortura a bruxa confessasse, essa era a prova de
que era culpada. Porém, se nada falasse, ficava provado o pacto com o demônio.
Sendo capaz de, no imaginário popular, provocar enfermidades, abortos,
transformar-se em parteiras para roubar crianças e ofertar ao diabo, provocar
praga nas plantações, matar pessoas e animais, causar a morte de crianças
dentre inúmeras desgraças, as bruxas eram o bode expiatório da sociedade.
Ela não precisava buscar
respostas para os fatos e fenômenos que ocorriam, nem questionar a realidade
político-econômica em que vivia. Tudo se explicava pela demonologia. Nesse
período histórico, é difícil estabelecer a fronteira entre cotidiano e
imaginário, delírio e fantasia, porém, estudar esse aspecto da mentalidade
colonial é fundamental para se entender o papel social da mulher brasileira.
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