segunda-feira, 21 de maio de 2012

BRUXAS, FEITICEIRAS E CURANDEIRAS: A MULHER NA INQUISIÇÃO

Rita de Cássia Lopes


Bruxas, feiticeiras e curandeiras sempre estiveram presentes na história da humanidade, mas só podem ser entendidas dentro do contexto em que atuavam. O período que nos interessa nesse artigo é o da Inquisição Portuguesa (1536-1820), que atingiu com seus tentáculos todo o império português d'além mar.

Para a legislação inquisitorial, não havia distinção entre bruxas, feiticeiras e curandeiras. Portanto, é difícil distinguir suas especificidades, pois todas estavam ligadas a práticas mágicas. Como exemplo disso temos as curandeiras que, além de fazerem uso de ervas medicinais, tiravam o quebranto ou curavam a erisipela com uma oração. Alguns estudiosos da Inquisição acreditam que feitiçaria é uma prática individual que faz encantos e sortilégios, enquanto que a bruxaria é de caráter coletivo e está associada a um culto. Na Galícia, em fins do século XVI, esta divisão estava clara, pois acreditavam que as bruxas enviavam o mal, enquanto as feiticeiras o sanavam.

Talvez tenham existido diferenças entre bruxas, feiticeiras e curandeiras, mas a homogenização destas atividades impetrada pela Inquisição fez com que desta forma chegassem até nós. Durante todo o período de funcionamento do Tribunal do Santo Ofício, os processos de bruxaria tiveram como documento norteador o Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), escrito em 1486 pelos frades dominicanos James Sprenger e Heinrich Kramer, a partir do Manual dos Inquisidores elaborado cem anos antes por Nicolás Eymirick. Didático, o Malleus está dividido em três partes: a primeira prova a existência de bruxas e demônios; a segunda descreve os malefícios causados pela feitiçaria e a terceira orienta os inquisidores quanto à forma de se obter confissões e quais os procedimentos que devem ser adotados durante todo o processo inquisitorial.

A caça às bruxas em Portugal intensifica-se a partir de 1547, após o perdão geral às pessoas de origem hebraica. O auto-de-fé de 1559, em Lisboa, tornou-se famoso por ter tido a presença de grande número de bruxas. Algumas foram condenadas ao degredo e a açoites públicos, enquanto outras queimaram nas fogueiras do Rossio. Essa caça foi fruto de uma intervenção da rainha Catarina que ordenou uma verdadeira devassa em Lisboa e arredores. Muitas das confissões de bruxaria e feitiçaria presentes nesse artigo, aos olhos de hoje, podem parecer surreais. No entanto, devem ser analisadas na complexidade da mentalidade da época: a Idade Moderna com sua herança medieval e o universo colonial.

Além do mais, muitas foram obtidas através da tortura. Esta, até o século XVII, só era utilizada nos casos em que havia insuficiência de provas. Porém, a partir do Regimento do Santo Ofício de 1640, tornou-se algo corrente dentro do processo inquisitorial. A intensidade das torturas sofridas variava de acordo com o arbítrio do inquisidor, assessorado pelo médico e pelo cirurgião-barbeiro do Tribunal. Durante os tormentos, só podiam estar presentes os carrascos, o médico, o cirurgião, os inquisidores, um representante do bispo e o notário. Antes de se iniciar o tormento, o réu era avisado de que, se morresse ou quebrasse algo, a culpa seria exclusivamente dele.

MAS DO QUE ERAM ACUSADAS ESSAS MULHERES?

De acordo com Laura de Mello e Souza, "os portugueses chegaram ao Brasil num momento em que a presença de Satã entre os homens era especialmente marcante. Monstros, animais, seres diabólicos, os colonos foram também feiticeiros, as formulações se sucedendo e se desdobrando no imaginário europeu". Recorrer a práticas mágicas foi uma das formas de ajuste do colono a um meio novo e hostil. A herança cultural acerca do conhecimento de ervas e de procedimentos rituais de índios, negros e europeus combinaram-se num processo sincrético, criando novas práticas mágicas. Assim, o uso das adivinhações, rezas e mezinhas avançou junto com a colonização.

No Brasil, ainda hoje se conservam fórmulas mágicas para combater quebranto, mau-olhado, erisipela e cobreiro, principalmente nos locais onde é difícil o acesso a médicos e hospitais. Grande parte dos curandeiros do Brasil colonial era formada por índios, africanos e mestiços. Ao contrário da feitiçaria e da bruxaria, onde as mulheres predominavam, o curandeirismo foi principalmente exercido por homens, pois as curas mágicas tinham grande importância nas culturas primitivas. É famoso o conhecimento dos feiticeiros tupinambás acerca da cura através da magia. Porém, não eram só os índios e os africanos que praticavam a cura mágica.

Os europeus, sem conhecimento para explicar as doenças, viam-nas como de origem sobrenatural. Assim, era natural que se recorresse à magia para curá-las. O papel das mulheres era fundamental nesse momento, pois tinham um verdadeiro arsenal de remédios da medicina popular que utilizavam aliados às orações específicas para cada caso. A busca da cura através de procedimentos sobrenaturais aproximava a medicina popular da feitiçaria. Daí a associação dos inquisidores entre bruxaria e curandeirismo.

Não estava só na cura de doenças a importância dessas "feiticeiras" na vida cotidiana colonial. Dependentes da Metrópole, a aventura ultramarina estava presente no dia-a-dia da sociedade: era necessário obter notícias de um parente que viajara para o Reino, saber quando um navio carregado de mercadorias chegaria, prever as condições de viagem e os perigos que enfrentariam no mar, entre outras informações fundamentais. As feiticeiras eram procuradas para dar essas respostas.

A vendeira Brígida Lopes foi denunciada à Inquisição em 1593 por ter feito "umas feitiçarias e sortes com água e chumbo" onde via André Magro d'Oliveira embarcar para Portugal, lutar no mar com um navio inglês, chegar a Lisboa e voltar ao Brasil. Como tudo ocorreu tal como previra, foi denunciada pelo próprio André. Muitas vezes, as feiticeiras eram acusadas quando uma nau se perdia ou afundava no mar tenebroso. Conflitos entre vizinhos e conhecidos também acabavam sendo alvo de denúncias de bruxaria.

É o caso de Luzia da Silva Soares, escrava acusada de feitiçaria pela família de seu senhor (teria causado a morte de dois de seus filhos) e por um pretendente rejeitado. Questões cotidianas tornavam-se denúncias. Construir coletivamente o estereótipo da bruxa era uma forma de identificar o responsável pelas desgraças e excluí-lo da comunidade. Numa sociedade escravista como a do Brasil colônia, a feitiçaria fez parte da resistência africana. Muitas vezes, recorrer a procedimentos mágicos era a única forma possível de defender-se.

Porém, esta também legitimava a repressão e a violência sobre o cativo. Ao associar os escravos a feiticeiros, estes eram responsabilizados por todas as desgraças ocorridas no trabalho, na lavoura e na casa grande. Os conflitos manifestavam-se também em infanticídios, reais ou imaginários, tanto na Metrópole quanto na Colônia. Na ânsia de encontrar explicações para a enorme mortalidade infantil, acreditava-se no poder das bruxas em secar o leite materno ou, ao assoprar o rosto do bebê, torná-lo incapaz de mamar, levando-o à morte.

No imaginário coletivo, estas crianças corporificavam os temores em relação às bruxas. Outras feitiçarias tinham fins amorosos. Faziam-se filtros de amor, poções, ungüentos, cartas de tocar e sortilégios diversos para facilitar as relações amorosas. Temos o caso de Joana de Vilhena, moradora de Santiago de Cacém, em Portugal, que denunciou sua tia, em 1572, por fazer magias juntamente com uma cigana, queimando ervas e recitando orações para que "seu homem fosse ter com ela sem ninguém saber".

Na Bahia, Antonia Fernandes, a Nóbrega, foi acusada de, entre outras feitiçarias, rezar junto ao amado: "João eu te encanto e reencanto com o lenho da vera cruz, e com os anjos filósofos que são trinta e seis e com o mouro encantador que tu te não apartes de mim, e me digas quanto souberes e me dês quanto tiveres, e me ames mais que todas as mulheres". Para arrumar casamento, todas as orações eram válidas. Rezava-se para as almas, Nossa Senhora da Graça, São Cipriano e São Marcos. Além da invocação dos santos, também havia orações que se voltavam para estrelas, plantas e animais e recorriam-se, também, a orações e sortilégios indígenas, com a utilização de pós, raízes e beberagens.

As cartas de tocar eram comuns em Portugal e no Brasil colonial. Acreditava-se que ao tocar o amado com a carta, este seria conquistado. Isabel Roiz, conhecida como a Boca Torta, vendia essas cartas na Bahia e afirmava que quem a tocasse "se iriam após ela". Assim, os inquisidores sexualizavam os crimes de feitiçaria, enxergando as bruxas como prostitutas. Um exemplo disso é o da bruxa portuguesa que confessou que "nenhuma mulher pode ser bruxa sem subir pelos degraus de feiticeira e de alcoviteira".

Essa associação entre feitiçaria e prostituição também era fruto da própria transformação da mulher em bruxa. Acreditava-se que esta, durante o ritual de pacto com o demônio, deveria jurar sobre o livro negro que renegava a Deus, selar o pacto com um beijo no rabo do demônio figurado em bode e manter relações sexuais com ele. São numerosos os relatos em que as bruxas confessam esses procedimentos. Devemos nos lembrar que muitas confissões eram resultado dos tormentos sofridos no Tribunal.

De acordo com o Malleus Maleficarum, se, durante a tortura a bruxa confessasse, essa era a prova de que era culpada. Porém, se nada falasse, ficava provado o pacto com o demônio. Sendo capaz de, no imaginário popular, provocar enfermidades, abortos, transformar-se em parteiras para roubar crianças e ofertar ao diabo, provocar praga nas plantações, matar pessoas e animais, causar a morte de crianças dentre inúmeras desgraças, as bruxas eram o bode expiatório da sociedade.

Ela não precisava buscar respostas para os fatos e fenômenos que ocorriam, nem questionar a realidade político-econômica em que vivia. Tudo se explicava pela demonologia. Nesse período histórico, é difícil estabelecer a fronteira entre cotidiano e imaginário, delírio e fantasia, porém, estudar esse aspecto da mentalidade colonial é fundamental para se entender o papel social da mulher brasileira.

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