Fichamento de:
No presente artigo o autor tem como objetivos equacionar
as condições de translocalização e de globalização das ciências modernas, bem
como as condições específicas da sua institucionalização e da atividade
científica em Portugal que se situa “na semiperiferia do sistema-mundo”. Isso fica bem claro
quando Nunes (2002, p.189) avalia que devido à condição de Portugal ser uma
“[...] sociedade semipériferica integrada numa região central do sistema-mundo-
a União Européia – [...]”. O artigo apresenta especificidades que são
examinadas pelo autor por ser ainda um fenômeno recente no processo de criação
e institucionalização de um sistema nacional de investigação e desenvolvimento
e que figuram uma cultura científica de fronteira. De
acordo com Nunes (2002, p.189-190): “O esquecimento da história das ciências,
dos contextos sociais e culturais e dos conflitos em que elas emergiram teve
três conseqüências importantes: em primeiro lugar, a eliminação da memória dos
espaços e dos tempos específicos em que se forjaram as idéias, os instrumentos,
as práticas e as instituições das ciências; segundo lugar, o esquecimento dos
conflitos e das contradições e tensões que atravessaram a história das
ciências, que tiveram na origem da sua ‘desunidade’ das continuidades e
descontinuidades com outros saberes e modelos de conhecimento; e finalmente, a
estreita relação que as ciências modernas, ocidentais mantiveram com dinâmicas
de denominação social, económica e militar, que resultaram na marginalização,
exclusão ou mesmo destruição de modos de conhecimento diferentes, radicados em
experiências históricas distintas”. Ao forja-se uma imagem de unidade
epistemológica e de modo privilegiado de acesso ao conhecimento do mundo
natural e social, estas se transformaram “[...] a Ciência num dos meios mais
poderosos de produção da globalização cultural no mundo contemporâneo, num dos
terrenos mais importantes em que se enfrentam as dinâmicas contraditórias da
globalização e da localização, da territorialização e da desterritorialização,
num domínio em que configuram de modo muito visível as hierarquias e
desigualdades que definem as diferentes ordens mundiais que se foram forjando
ao sabor das transformações históricas dos últimos cinco anos” (NUNES, 2002,
p.191). Na atualidade, a produção científica realiza-se em instituições e
unidades de investigação científica e tecnológica que mantêm diversos vínculos
e inter-relações com instituições governamentais responsáveis pela definição
das políticas de investigação e desenvolvimento e pela distribuição dos
recursos financeiros, e também em empresas ou laboratórios privados que definem
os seus próprios objetivos e interesses. Muitas atividades que buscam nas as
ciências sua legitimação social – como a medicina e engenharia – organizam-se
em profissões numa base nacional. Mas
tanto as ciências quanto as profissões de base científica “[...] fazem assentar
a sua autoridade na invocação da validade universal dos seus conhecimentos e
procedimentos, uma validade sancionada pela participação em comunidades que
transcendem as fronteiras dos Estados nacionais” (NUNES, 2002, p.191). A
transnacionalização é, sem dúvida, um dos processos que mais bem definem a
especificidade das actividades e profissões associadas à ciência e tecnologia.
É importante reconhecer as especificidades dos processos de globalização das
ciências quando confrontados com a transnacionalização e a globalização. Este
processo de globalização da ciência não decorre de qualquer inerência da sua
universalidade – isto é, da validade das suas proposições e procedimentos
independente das circunstancias em que eles são acionados -, conforme o autor, é
esse trabalho que permite, seguindo a tipologia dos modos de produção da
globalização proposta por Boaventura de Sousa Santos (2001), descrever as
ciências modernas, herdeiras da Revolução Científica, como um conjunto de
criações situadas no tempo e no espaço e que se globaliza em virtude de sua
translocalização. Para o autor, os processos de translocalização das ciências e
do conhecimento e dos objetos científicos podem assumir, em primeiro lugar, a
forma de translocalização das tecnologias através da reprodução do espaço
material e competências técnicas que definem um determinado laboratório. A globalização das ciências corresponderá à
constituição de uma rede de laboratórios capaz de replicar e reproduzir de
forma ‘robusta’ os mesmos procedimentos. Nunes (2002, p. 193) enfatiza que uma
conseqüência desta definição será “a marginalização ou exclusão de formas
alternativas ou locais de produção do conhecimento ou do próprio conhecimento
que neles se produz, relegando-os para o domínio dos ‘outros’ desqualificados
da Ciência”. Em segundo lugar, a translocalização passa pela formação e
recrutamento de cientistas e técnicos credenciados que, mesmos na ausência de
condições ideais, podem assumir uma posição uma posição de validar,
marginalizar ou excluir aqueles que não possuem credenciais escolares,
acadêmicas ou profissionais adequadas. O
autor deixa claro que a criação de instituições de formação – escolas,
Universidades – é um aspecto fundamental desse processo. Nunes (2002), citando
Latour (1987), Shapin e Schaffer (1985), destaca que a autoridade e a
credibilidade da ciência são incorporadas em objetos impressos (manuais
escolares, acadêmicos, periódicos especializados, etc.), eletrônicos (em meio
digital e internet) ou de outro tipo de suporte de registro de informação, são
caracterizados pela sua condição comum de “móveis imutáveis” (p.193). Nunes (2002)
procura averiguar o modo como variações locais entre laboratórios são mediadas
por diferenças nos meios sociais e culturais locais e nacionais em que os
laboratórios se situam, em função da sua posição no sistema mundial da ciência.
Em Portugal, as ciências exibem um conjunto especificidades históricas que são
inseparáveis da condição semipériferica da sociedade portuguesa. Entre elas,
uma forte heterogeneidade interna, expressa, nomeadamente, “nas fronteiras
fluídas ou flutuantes entre disciplinas e domínios de investigação” (NUNES,
2002, p.194); a heterogeneidade das carreiras dos cientistas; o envolvimento
desigual de grupos de instituições de pesquisa com as ciências transnacionais;
a forte feminização (em termos relativos) de muitas áreas da investigação, em
paralelo com dificuldades de acesso de mulheres aos lugares de topo das
carreiras científicas e acadêmicas e aos cargos de direção de instituições de
pesquisa e investigação e a acentuada dependência em relação a financiamentos
oriundos de programas europeus. É no quadro dos
processos de “europeização” das ciências
em Portugal que algumas das tensões que caracterizam a condição semiperiférica
da sociedade portuguesa ganham maior visibilidade. O autor destaca que a
integração européia teve dois tipos de conseqüências importantes, umas no domínio
da policy for science, outras no da science for policy. Portugal, em relação à policy for science, criou um sistema Portugal de investigação em ciência
e tecnologia. Em relação à science for policy, foram criados quadros
normativos que obrigaram à produção de uma legislação nacional em áreas como o
ambiente ou a genética humana, ou seja, foi criado um espaço de legitimação da
intervenção ativa dos cidadãos. Nunes (2002) alerta que estas transformações
ainda são frágeis. Os financiamentos para pesquisa e investigação continuam
fortemente dependentes dos fundos europeus e o esforço do Estado português está
muito aquém do esperado e desejado. Finalizando,
os estudos incluídos no livro Enteados de Galileu? (NUNES; GONÇALVES, 2001), identificam as
condições históricas e contemporâneas dependência da Ciência em Portugal e de
inserção de uma “sociedade semiperiférica nos mundos transnacionais da ciência”
(NUNES, 2002, p. 195) e oferece uma reflexão sobre “esse espaço de fronteira”
(p.197) como um espaço dinâmico de invenção e de inovação, de exploração de
novos processos de produção de conhecimento mais críticos.
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